segunda-feira, 5 de julho de 2010

Entrevista concedida à revista Veja, pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso




Veja - O maior problema da Justiça brasileira é a lentidão. Por que os tribunais levam até dez anos para julgar um processo?

Peluso - Em primeiro lugar, há um volume des­necessário de trabalho no sistema judi­ciário, provocado sobretudo pelas grandes empresas - especialmente nos casos em que elas são processadas por seus clientes. Mesmo quando não têm razão, elas apresentam inúmeros recursos para adiar a definição dos pro­cessos. Fazem isso para postergar o pa­gamento das dívidas, quando poderiam identificar os pontos litigiosos, chegar a uma solução razoável com os consu­midores e, assim, resolver as causas com que ficam nos entulhando. Essa situação onera o Judiciário e os cida­dãos. Outro problema é a administra­ção pública, o maior cliente do Judiciá­rio. A exemplo das grandes empresas, os órgãos públicos recorrem em todos os casos em que se envolvem. De no­vo, não há por que ser assim. Eles tam­bém poderiam abrir mão dos recursos,ao menos nos casos em que sabida­mente vão perder, dada a existência de processos anteriores semelhantes.

Mas as empresas e o governo só apre­sentam essa quantidade de recursos porque ela está prevista na lei.

Concor­do. O nosso sistema jurídico oferece muitas oportunidades de recursos, es­pecialmente porque é formado por muitas instâncias. Há quatro instâncias até que se chegue ao STF, o que é um absurdo. Normalmente, em outros paí­ses, são apenas duas instâncias. No Brasil, por causa disso, demora-se o tempo de uma geração até o Supremo decidir sobre algo.

Como impor limites ao número de recur­sos?

O Congresso está discutindo a re­forma do Código de Processo Civil e do Código de Processo Penal. São eles que regem o andamento dos processos. Se essas reformas forem bem feitas, poderemos limitar o número de recur­sos e ganhar muito em agilidade.

No caso específico do Supremo Tribunal Federal, quais são os motivos da lenti­dão?

Temos uma Constituição extremamente analítica, com mais de 200 artigos e mais de cinquenta emendas. Praticamente qualquer causa pode ser levada ao Supremo, que é uma corte constitucional. Nos Estados Unidos, a Constituição tem sete - sete! - arti­gos e 27 emendas. Eles julgam de no­venta a 100 casos por ano. Nós julga­mos mais de 120000.

E qual seria a quantidade ideal?

Sendo generoso, umas cinquenta causas por mês para cada ministro. Isso daria 6600 por ano, o que já seria um absur­do se comparado ao volume de trabalho da corte americana. Quando era presi­dente do STF (de 1995 a 1997), o mi­nistro Sepúlveda Pertence foi a um en­contro de presidentes de cortes consti­tucionais·na Itália. Cada um contava a história da corte do seu país. Na vez de­le, o ministro relatou que o STF havia julgado 60000 processos naquele ano. Na hora do café, um juiz americano lhe disse: "É preciso tomar cuidado com o seu tradutor. O senhor falou em 6000 processos e ele traduziu como 60000". Eles simplesmente não acreditam no volume de trabalho que temos aqui.

Os ministros leem todos os processos que julgam?

É humanamente inconce­bível para um ministro trabalhar em to­dos os processos que recebe. Ninguém dá conta de analisar 10.000 ações em um ano. O que acontece? Você faz um modelo de decisão para determinado tema. Depois, a sua equipe de analistas reúne os casos análogos e aplica o seu entendimento. Acaba-se transferindo parte da responsabilidade do julgamen­to para os analistas. É claro que o ideal seria que o ministro examinasse detida­mente todos os casos.

Isso prejudica a qualidade da decisão?

Não quero afirmar que isso sempre prejudica a qualidade da decisão, mas há o risco de isso ocorrer - e só o ris­co já é suficiente para tentarmos resol­ver o problema. Essa transferência de responsabilidade para as assessorias pode causar abusos. Não digo em rela­ção ao STF, que é muito cioso de seus assessores. Refiro-me aos tribunais de segunda instância, em que o volume de trabalho também é enorme.

A súmula vinculante foi criada em 2004 para obrigar juízes de primeira instância a seguir as decisões do STF e evitar recursos desnecessários. Está funcionan­do?

A súmula vinculante é um ótimo mecanismo, porque tem de ser seguida tanto pelos juízes quanto pela adminis­tração pública. É um enunciado de en­tendimento já consolidado pelo Supre­mo. Poupa muito trabalho. Mas temos apenas 31 súmulas vinculantes. Deve­ria haver muito mais.

Outro mecanismo, o da "repercussão ge­ral", fez com que, a partir de 2007, ape­nas casos de grande relevância fossem admitidos no STF. Qual é o resultado?

Graças a esse filtro, o número de casos que chegam ao Supremo caiu 40%. Mas, como eu disse, ainda são mais de 120000 processos por ano. Poderíamos ser mais rigorosos ao aplicar a reper­cussão geral. Ocorre que alguns minis­tros entendem que qualquer recurso que envolva, por exemplo, matéria tri­butária tem repercussão geral. Eles ale­gam que, nesse caso, o número de pes­soas atingidas costuma ser grande. Eu não compartilho desse entendimento.A meu ver, o universo de pessoas atin­gidas, por si só, não é suficiente para atender aos requisitos da repercussão geral. Há casos que atingem uma só pessoa, mas podem ter enorme impor­tância para o país. Outros dizem res­peito a 100000 cidadãos, mas não têm repercussão alguma. Devemos pensar em adotar critérios mais objetivos e limitadores.

Alguns juízes de primeira instância de­safiam o Supremo ao, por exemplo, mandar prender alguém quando o STF manda soltar. Às vezes, mesmo interpre­tações consolidadas do tribunal são contrariadas por instâncias inferiores. Por quê?

Alguns magistrados simples­mente desconhecem nossas decisões. Ninguém fica vendo a TV Justiça o dia todo para saber como o STF decide. Vou estudar uma forma de fazer com que decisões importantes do Supremo sejam comunicadas instantaneamente aos juízes do país inteiro. Mas há tam­bém uma explicação de natureza psicanalítica para a questão. Afinal, o que os tribunais superiores representam para os juízes? A autoridade paterna. Eu sei, eu fui juiz. Pensava: "É um ab­surdo o tribunal decidir desse jeito! Eles estão errados! Não podem me obrigar a segui-los!". Trata-se de um mau entendimento da independência. Mas o mais grave, e no que pouca gen­te presta atenção, é que, quando o juiz decide contrariamente ao STF, os que têm bons advogados conseguem che­gar aqui e mudar a situação. Os outros, que não conseguem, acabam tendo uma sorte diferente. Isso se chama, na prática, iniquidade. Casos iguais, trata­mentos diferentes. Sob o pretexto de resguardar a independência dos juízes, cria-se injustiça.

Recentemente, o senhor foi acusado de nepotismo por contratar um casal ­marido e mulher - para cargos de con­fiança no Supremo. O que tem a dizer sobre isso?

Já dei explicações públicas suficientes. Não quero mais mexer nesse assunto. Você acha que eu no­mearia um casal se entendesse que es­tava incorrendo em nepotismo? Claro que não. A súmula que estabelece as regras anti nepotismo foi redigida mui­to rapidamente, sob a pressão de cir­cunstâncias políticas. Do jeito que o texto ficou, se uma mulher trabalhar como servente num órgão da Receita Federal no Rio Grande do Sul, o mari­do dela não poderá trabalhar como servente num órgão do Ministério da Pesca no Amazonas, porque os dois estarão empregados pela mesma pes­soa jurídica, que é a União. A ideia de nepotismo está ligada ao fato de a au­toridade pública nomear um parente dela própria para um cargo. Isso viola a Constituição porque a administração pública tem de se reger pelos princí­pios da moralidade e da eficiência. Esse princípio não foi violado no exemplo que dei. Todos os ministros do Supremo reconhecem que a redação da súmula do nepotismo é deficiente. Cedo ou tarde, terá de ser refeita.

Costuma-se dizer que, no Brasil, se po­de matar ao menos uma pessoa sem nunca ir para a cadeia. O que isso tem de verdadeiro?

Isso pode ser verdade, mas essa impunidade não deve ser atribuída aos juízes, porque são vários os fatores que constituem o sistema jurídico penal. Uma ação penal não começa com o magistrado. Começa na polícia, que faz um inquérito no qual o juiz não tem participação ativa. O Ministério Público tem, porque pode pedir diligências e provas.Se o promotor oferecer a denúncia e o juiz aceitá-la, o Ministério Público terá de reunir provas suficientes da existência do crime e da culpa do réu, para enfrentar a defesa. Se não houver provas suficientes, o juiz terá de ab­solver o réu. Só que ninguém dá aten­ção ao fato de que o promotor é que não as obteve. E é isso que muitas vezes ocorre.

Mas por que mesmo pessoas condena­das mediante provas consistentes esca­pam da cadeia?

Porque o sistema jurí­dico oferece uma série de alternativas para não levar as pessoas à cadeia sempre. E isso não é ruim. Nosso sis­tema carcerário tem casos escandalo­sos de desumanidade que, na minha visão, configuram crime do estado contra o cidadão. O Espírito Santo é um exemplo dessa situação. A menos que seja absolutamente necessário, não se deve mandar um criminoso pa­ra a cadeia. A prisão não deve funcio­nar como uma satisfação dessa pulsão primitiva que o ser humano tem pela vingança. Não podemos nos compor­tar como pré-históricos.

Mas como explicar o fato de um assas­sino confesso como o jornalista Antonio Pimenta Neves, condenado duas vezes, continuar em liberdade?

No caso dele, ainda há um recurso pendente de jul­gamento no Superior Tribunal de Jus­tiça. Ele não pode cumprir pena porque a sentença não transitou em julga­do - ou seja, ainda não houve um julgamento definitivo. Por enquanto, ele só poderia ficar preso preventiva­mente. Mas suponho que a prisão pre­ventiva não se encaixe no caso dele. Eu não conheço o processo.

Mas um cidadão pobre que tivesse co­metido o mesmo crime estaria preso.

Existe diferença entre uma defesa fei­ta por um grande advogado e uma fei­ta por um advogado de conhecimentos parcos? É óbvio que existe. Isso se re­flete na condução de todos os proces­sos. O problema não é os ricos conta­rem com bons advogados, e sim os pobres serem mal defendidos. Se você tem um advogado bom, ele pode fazer uma investigação paralela e produzir boas provas em favor do réu, uma de­fesa consistente, o que aumenta a pos­sibilidade de seu cliente não ser con­denado. Quem não tem disponibilidade de recursos pode ser prejudicado.Por isso, o STF é muito liberal em re­lação à admissão de habeas corpus.Se alguém escrever, ainda que seja um bilhete, pedindo habeas corpus, vamos examiná-lo, tamanha é a nossa preo­cupação em estender a todos as garan­tias individuais.

O senhor já se arrependeu de alguma decisão judicial?

Minha consciência nunca me deixou acordado por causa de alguma decisão, nem de absolvi­ção, nem de condenação. Durmo tranquilo.

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